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Fair share: entre infraestrutura digital e fluxo de serviços e dados

Fonte: Jota

26 de janeiro de 2023

A assimetria entre a indústria de telecomunicações e as empresas de tecnologia, que ascenderam nas últimas duas décadas, tem refletido em questões que vão de temas como acessibilidade digital à sustentabilidade dos custos da infraestrutura digital. No tocante a sustentabilidade da infraestrutura que viabiliza o fluxo de dados e serviços digitais, apesar do debate já durar alguns anos, foi somente em 2022 que reguladores ao redor do mundo passaram a considerar a questão como uma real possibilidade, gerando acirrados debates entre operadoras e conglomerados de tecnologia. Em entrevista coletiva em maio do ano passado, a vice-presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, afirmou ser essa uma questão a ser considerada “com muito foco”, acrescentando que os grupos de tecnologia “não têm contribuído para viabilizar os investimentos na implantação da conectividade”[1]. No mesmo sentido, Thierry Breton, o comissário do Mercado Interno da Comissão, demonstrou em diversas ocasiões[2] que é favorável à demanda das operadoras e que lançaria, ainda no início de 2023, uma consulta pública sobre o pagamento do chamado “fair share”[3].

“Fair share”, ou “contribuição justa”, refere-se à proposta de repasse de parte dos custos de atualização e manutenção da infraestrutura que viabiliza o fluxo de dados digital às plataformas e grandes empresas de tecnologia produtoras de conteúdo. O principal argumento reside no fato de que grande parte do tráfego de internet ocorre por meio do fluxo de dados decorrentes de seus serviços e, sem, por sua vez, uma contribuição para seu custeio. Os altíssimos lucros a partir da utilização dessa infraestrutura geraria uma assimetria injusta entre quem mantém a infraestrutura que possibilita o mundo digital e especialmente grandes conglomerados tecnológicos que fazem uso — e até sobrecarregam — essa infraestrutura sem, contudo, contribuir para sustentabilidade e expansão da infraestrutura. As propostas, baseadas nas ideias de sending-party-network-pays (SNPN) ou sending-party-pays (SPP), podem se dar, na prática, por meio da exigência de pagamentos de taxas ou impostos específicos para utilização dessa infraestrutura, hoje financiada e administrada unicamente pela indústria de telecomunicações.

De acordo com “apelo” feito pelos CEOs da Telefónica AS, da Vodafone, da Deutsche Telekom e da Orange — algumas das gigantes do setor de telecom na Europa —, a situação atual estaria se tornando insustentável: o aumento substancial das atividades online e, consequentemente do tráfego de dados, requer investimentos constantes em atualização e expansão da capacidade da infraestrutura, que não deveriam recair apenas sobre essas empresas, sob pena de se colocar em risco a própria qualidade entregue aos usuários finais[4]. Ainda de acordo com a carta, as operadoras, hoje, não estariam em posição de negociar termos justos com as gigantes de tecnologia, dada suas fortes posições de mercado, poder de barganha assimétrico e falta de condições regulatórias niveladas voltadas para a sustentabilidade e expansão da infraestrutura. No entanto, streamings de vídeo, jogos e mídias sociais responderiam por mais de 70% do tráfego que circula nas redes, devendo, portanto, ser responsável por uma parte proporcional do ônus.

Logicamente, o debate é complexo e multifacetado. É verdade que as empresas de telecomunicação têm investido amplamente na expansão da rede para acompanhar o aumento do fluxo de dados. De acordo com estudo da Frontier Economics, de abril de 2022, os custos totais de rede relacionados ao tráfego na Europa, considerando rede fixa e rede móvel, estão entre 36 e 40 bilhões de euros por ano[5]. Esses custos, no entanto, só podem ser repassados aos usuários finais (com limitações concorrenciais e regulatórias), refletindo abordagens que foram desenvolvidas em um contexto anterior à introdução dos serviços de banda larga que, por sua vez, criaram novas assimetrias. É também verdade que seis gigantes da tecnologia — Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), Alphabet (Google search, YouTube), Apple, Amazon, Netflix e Microsoft — respondem por mais da metade do tráfego na Internet. Comumente chamadas de over the top (OTTs, em referência ao oferecimento de serviços sobre a infraestrutura já existente), tais empresas foram responsáveis por mais de 56% do tráfego global em 2021, como demonstra recente estudo da Axon[6]. Ademais, o crescimento da receita dessas empresas — impressionantes 500% de aumento desde 2015 — também revela a assimetria de poder econômico em relação ao setor de telecomunicações — que viu uma queda de 7% no mesmo período[7]. O estudo conclui que esse cenário apresenta enormes desvantagens para o mercado europeu: impactos econômicos, com a redução dos investimentos nas redes; impactos sociais, na inovação e na qualidade do serviço; e, ainda, impactos ambientais, considerando a maior disponibilidade de investimentos em tecnologias sustentáveis. Acima de tudo, essa assimetria afetaria a médio e a longo prazo a acessibilidade digital da população como um todo.

Enquanto isso, França, Itália e Espanha enviaram um documento conjunto à Comissão[8] pedindo que fosse desenvolvida uma proposta legislativa para lidar com esse cenário. O apoio institucional ao “fair share” também se reflete no Path to the Digital Decade[9]. Trata-se de um programa político, adotado pelo Conselho — que representa os 27 governos da União Europeia — para tornar a Europa um líder tecnológico até 2030. No capítulo de título “Solidariedade e inclusão”, um dos comprometimentos listados é o de “desenvolver quadros adequados para que todos os intervenientes no mercado que beneficiam da transformação digital assumam suas responsabilidades sociais e contribuam de forma justa e proporcionada para os custos dos bens, serviços e infraestruturas públicos, em benefício de todos os europeus”[10]. Apesar de não citar explicitamente as grandes plataformas, o texto faz um aceno importante ao setor de telecomunicações.

Movimentações semelhantes têm também ocorrido fora da Europa. Na Coreia do Sul, o estrondoso sucesso da série “Round 6” fez com que o tráfego da Netflix explodisse 26 vezes na rede da SK Broadband, empresa de telecomunicações do país, causando dezenas de milhares de dólares em aumento de custos[11], o que levou a uma batalha judicial acerca do compartilhamento do ônus do custo de manutenção desse aumento. Após vitória da SKB na Corte Distrital do país, o caso segue em discussão em sede de recurso no Tribunal Superior de Seoul[12]. Na seara legislativa, a Coreia do Sul aprovou, em 2020, a revisão do Telecommunications Business Act, apelidado de “Lei Netflix”, como uma tentativa de instar grandes operadoras estrangeiras a compartilhar custos para garantir serviços estáveis online[13]. Nos Estados Unidos, o projeto de lei Funding Affordable Internet with Reliabe Contributions Act ou FAIR Contributions Act (S. 2427) exige que a Federal Communications Comission (FCC) estude e relate a viabilidade de financiar o Fundo de Serviço Universal por meio de contribuições de provedores online de conteúdo e serviços[14]. Atualmente, o fundo obtém financiamento em grande parte da receita (em declínio há mais de 15 anos) das operadoras de telecomunicação, de modo que o aumento na reserva de subsídios poderia sustentar economias locais e ajudar a acabar com a exclusão digital[15].

No entanto, não são poucas as críticas envolvendo essas iniciativas. Em reação às movimentações na União Europeia, a European VOD Coalition, em publicação de abril de 2022[16], sumarizou as principais preocupações quanto às possíveis políticas de redistribuição de custos. Em primeiro lugar, destacou que não são exatamente as OTTs que geram tráfico, mas sim os usuários finais quando usam a conexão. Nesse sentido, a grande parcela do tráfego ocupada pelos streamings apenas demonstraria o valor dos serviços oferecidos pelas empresas de tecnologia que, ao final, contribuiriam para criar a demanda por serviços de telecomunicações. Em segundo lugar, defendeu que as empresas de serviços online já investem pesadamente na construção de caches, data centers e cabos submarinos, por exemplo, que contribuem para a infraestrutura da internet. Em terceiro lugar, demonstram preocupações com o possível comprometimento do princípio da neutralidade da rede, segundo o qual ISPs não podem bloquear ou limitar o tráfego para priorizar alguns serviços em detrimento de outros. No mesmo sentido, a European Internet Exchange Association, em carta à Comissão Europeia[17], indicou que políticas de “fair share” correm o risco de serem prejudiciais para o correto funcionamento do mercado de conectividade da Internet, criando distorções à concorrência e prejuízos em qualidade do serviço. Outras críticas alertam para a possibilidade de as plataformas de conteúdo rotearem seus serviços por meios de ISPs fora da União Europeia a fim de escapar do pagamento das eventuais taxas ou, ainda, repassaram os custos para os usuários finais[18].

Em famoso discurso de 2014, a então comissária da Agenda Digital, Neelie Kroes, disse às operadoras de telecomunicações para “se adaptar ou morrer”, e que sua situação não era culpa das plataformas[19]. Menos de uma década depois, o reconhecimento da centralidade das plataformas digitais no ecossistema comunicacional fornece novos contornos às estruturas legais e regulatórias na União Europeia e no mundo. Após a aprovação do Digital Services Act e do Digital Services Act em 2022, o pêndulo de atribuição de responsabilidades compatíveis ao poder e a influência no ecossistema digital desloca em direção a um novo capítulo, dessa vez envolvendo o setor de telecomunicações e os custos da infraestrutura da Internet propriamente dito.

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