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26 de novembro de 2021
Por Bruno Dantas, ministro do TCU, professor da UERJ e doutor em Direito pela PUC-SP, e Caio Victor Ribeiro dos Santos, advogado e professor convidado da UERJ
*Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico, na edição de 26/11/21
Dentre as múltiplas expressões jurídicas do direito fundamental à informação, destaca-se o dever do Estado de garantir a publicidade de suas atividades. As diretrizes desse dever foram definidas na parte inicial do artigo 37, §5º da Constituição, que dispõe: “A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social […]”.
No século XXI, com a propagação massiva de notícias falsas, essa norma ganha especial relevo, já que estabelece critérios qualitativos de controle da publicidade estatal, alcançando e proibindo o patrocínio de anúncios em veículos que notoriamente desviem-se do compromisso público com a verdade factual.
Afinal, nesse contexto, não há nada menos educativo, ilusório, de nula orientação social e atentatório à verdade do que a propagação de notícias falsas. Se sua divulgação em plataformas particulares, que não gozam de qualquer apoio estatal, já deve ser motivo de intervenção do Estado, que dizer de veículos que propagam notícias falsas contando, inclusive, com o patrocínio de verba pública?
Recentemente o TCU examinou o tema. O caso envolvia a utilização de verba publicitária de um banco controlado pelo Estado brasileiro na monetização de site que responde a processos judiciais, acusado, e até mesmo condenado, por divulgar fake news. E a conclusão da corte, com fundamento na norma citada, não foi outra senão a de que deveria cessar imediatamente o patrocínio de portais que veiculem fake news.
De fato, as redes levaram ao extremo a percepção que Ortega Y Gasset esboçava na década de 1930 acerca da ascensão das massas.
Olhando para a Europa daquele período, o fenômeno das aglomerações sociais e a peculiar homogeneização do modo de vida europeu, que foi igualmente captado nos EUA e representado por Ray Bradbury em sua distopia, o filósofo espanhol observava que sua época assistia “[a]o triunfo de uma hiperdemocracia em que a massa atua diretamente sem a lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos”. Ao escrever, concluindo a ideia, que “agora, por sua vez, a massa crê que tem direito a impor e dar vigor de lei a seus tópicos de café”, não poderia ele, àquela altura, imaginar a extensão do acerto que essa observação adquiriria mais tarde com o surgimento e expansão das redes sociais.
Não faz muito, a opinião pública, fora das universidades, era formada quase que com exclusividade pela imprensa escrita, radiofônica ou televisiva. A propagação das informações estava, tradicionalmente, concentrada em poucos polos de difusão, que atuam com base em critérios jornalísticos que prezam pela busca da neutralidade e imparcialidade. Esse círculo mais fechado propiciava um acompanhamento e controle da informação em proporções mais razoáveis, capacidade que diminui à medida que seu diâmetro aumenta.
Essa concentração mudou radicalmente no século 21, não sendo propriamente substituída, mas dividida, senão confrontada, por outros espaços de difusão da informação instaurados pelas redes sociais, cujo alcance frequentemente é maior do que os espaços tradicionais. A prensa móvel tem perdido espaço para dispositivos, e os jornais impressos sucumbiram às plataformas digitais. Para utilizar a metáfora de Niall Fergusson, a torre ainda existe, mas a praça ganhou força. E a praça desperta riscos maiores, porquanto difusa e de difícil controle, porquanto carente do rigor científico da academia, do protocolo de neutralidade e imparcialidade da imprensa tradicional, e da ameaça de efetiva responsabilização do direito — que apenas há pouco vem sendo melhor desenvolvida, diante dos excessos que a liberdade na vida virtual tem sediado.
Ao que tudo aponta, entretanto, a expansão dos meios de comunicação não é o único ingrediente da solução que levou ao sucesso nefasto das fake news. Alia-se a isto o fato de parecer predominar, no ideário popular, o relativismo, em suas diversas facetas, enquanto negação de verdades absolutas.
Esse relativismo, que apesar de ter conotações específicas em certos debates filosóficos — e isso o leitor encontrará em Sartre e Albert Camus —, possui repercussões práticas na vida social, e, como o direito é, nas palavras de Dworkin, uma prática social argumentativa, o relativismo afeta também a atividade jurídica, embora se reconheça que o debate desse tema no direito ainda esteja muito aquém do debate filosófico.
Desde que Dostoiévski insinuou que “se Deus não existe, tudo é permitido”, parece ter-se seguido, ou ali o escritor russo já percebia, um relativismo generalizado, a interpenetrar diversos âmbitos da vida e do conhecimento, que, ao aceitar que não existem verdades e que cada um pode estar certo sob o seu sagrado ponto de vista, tudo tolera, qualquer ponto de vista admite, pois a ninguém compete definir o que é certo e o que é errado, o que é melhor e o que é pior. Se o absoluto não existe, todo e qualquer juízo é lícito e merecedor de consideração. Se a verdade é um delírio dos metafísicos, como diria Nietzsche, que todos ergam livremente suas convicções.
O problema é que esse relativismo não se exaure na esfera individual do intelecto de quem o propaga. É enorme a quantidade de pessoas e grupos prejudicados pela inverdade que nele se legitima. O mesmo se diga da democracia. Se as fake news acharam solo fértil para disseminação, isso se deve também a esse relativismo barato que viceja sob o manto da liberdade de expressão, pelo qual se acaba tolerando a ideia de que não existem verdades e que o juízo de cada um deve ser sempre livre, ainda que para discordar sobre a existência do Sol ou para negar a forma esférica da Terra.
Não é bem assim. Ninguém pode definir ao seu próprio gosto as leis de seu discurso se elas interferem na vida de terceiros, se têm potencial de prejudicar a outrem, ainda que essas leis digam respeito ao juízo que se está a emitir sobre as coisas. É ferir a máxima de que a liberdade de cada um tem fim onde começa a do outro.
Em se tratando de fake news, juízos imprecisos ou deliberadamente enganosos terminam não só por atingir, muitas vezes de forma irreversível, a vida privada das pessoas, como também levantam um problema difuso de indeterminabilidade cognitiva. Se a avalanche de produções, por si só, já cria um sério problema de cognoscibilidade da informação, que, no entanto, é completamente lícito, a falsidade da informação precipita-nos em um abismo ainda maior: o cinismo. Este, sim, intolerável.
Desde as experiências totalitárias do século 20 não se pode mais dizer que a mentira, o engano e a insinceridade sejam questões que se encerrem meramente nas fronteiras da moral. Teve a história, a duras penas, que reconhecer-lhes a devida estatura política, social e jurídica. Das guerras do passado às eleições de hoje, muito se aprendeu que a mentira não pode ser apenas um capricho disposto conforme o íntimo de cada um. Ela impacta a vida, a política, o Estado. E, por isso, reclama regulação.
Ao estudar as estratégias dos governos totalitários, Hannah Arendt refletia sobre como a propaganda ideológica estatal tinha como base a manipulação do sentido de realidade das pessoas. A fórmula dessa manipulação, que alia conhecimentos das ciências sociais e da psicologia, a filósofa sintetizou em entrevista concedida em 1974: “Se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada”.
Da obra “Entre o Passado e o Futuro”, escrita pela filósofa, extraímos a lição de que a maior ameaça que a mentira política organizada oferece à sociedade não é a sedução pelo falso, não é fazer com que o indivíduo viva iludido com o ilusório, mas despertar-lhe, sistematicamente, um curioso e pérfido cinismo: esse estado interior que faz alguém ser incapaz de acreditar na verdade de qualquer coisa. Uma espécie de incerteza generalizada que anula mesmo o mais legítimo discurso. A mentira não é um convite solene à inverdade, mas um impulso mordaz contra a confiança no real.
Como explica Carla Osmo em sua tese de doutorado, a mentira política organizada “retira o solo sobre o qual os homens colocam os seus pés, abandonando-os sobre a areia movediça de um mundo desfatualizado, destrói a sua capacidade de ação e prejudica a faculdade da memória”. Sem um palco comum, sem um consenso mínimo dos fatos, qualquer coisa pode haver entre dois interlocutores, exceto um debate.
Saber o que realmente são os fatos não é mera curiosidade, mas uma necessidade. E o respeito a eles é mais que direito à informação, mais que direito ao saber, pois este, normalmente, compreende o acesso, e não a qualidade do objeto acessado. Alinha-se mais a um — ainda em construção — direito à verdade.
Quando Winston (“1984″) vaga pelas ruas em busca de uma fagulha sequer que ilumine o seu passado e o de seu povo, o direito, ainda vago, que jaz sob esse pleito legítimo é um direito à verdade. Quando Clarisse questiona Montag (“Fahrenheit 451”) se houve um tempo em que os bombeiros apagavam incêndios em vez de queimarem livros — ao que último responde ser esta uma ideia absurda —, o que ressoa na dúvida é uma aspiração por nada menos que a verdade. E quando o Bernard (“Admirável Mundo Novo”) se apavora ao pôr os olhos na forma como se produzem seres humanos na sociedade futurística de Huxley, no assombro que assalta seu espírito está o matiz que justifica um direito à verdade. Ele esteve sempre ali, nas entrelinhas das grandes distopias do século 20, onde se lê uma percepção comum: a de que a verdade fatual é uma condição político-existencial básica. Sua falta ou comprometimento frustra a capacidade de julgamento, sem a qual não pode existir liberdade de opinião.
Na sociedade da informação, ao regular a autonomia privada, o Estado deve se equilibrar na linha tênue que separa o combate às fake news da censura. Ao gastar dinheiro público para comunicar ações governamentais, porém, o sarrafo deve ser bem mais elevado, sob pena de vilipendiar o artigo 37, §5º da Constituição.
A maturidade da democracia depende da qualidade do diálogo, que se deteriora com a profusão de notícias falsas. Estas obscurecem a ponte que liga os fatos ao entendimento. Sem uma noção correta da realidade, existe um risco concreto de que o cidadão passe a tomar decisões fundamentadas em ilusões ou inverdades puras, supondo estar decidindo livremente. Logo, o debate construtivo e o pluralismo cedem, e, com eles, a liberdade e o debate democrático.
Preservar os fatos do engano e os juízos da censura: eis a difícil tarefa que repousa sobre a mesa de trabalho do século 21.
Confira o artigo no ConJur.
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