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18 de abril de 2022
No período final da pandemia, é urgente resgatar o conceito nas ações mais cotidianas
No início dos anos 2010, o Vale do Silício criou para si uma nova narrativa. O antigo arquétipo do nerd pós-contra-cultura, que varava noites numa garagem entulhada de computadores, deu lugar a uma ideologia empreendedora, motivada por arautos da inteligência artificial e “democratização”, de preferência, em escritórios munidos de mesas de pingue-pongue e comidinhas na faixa. Rapidamente, essa mitologia passou a ser retratada como o futuro do trabalho, do transporte, da educação, da vida. Era o “software comendo o mundo”, como cunhou um dos protagonistas dessa cena, o megainvestidor Marc Andreessen, em um artigo que escreveu ao The Wall Street Journal, em 2011.
O que embalou esse novo cânone foi a disseminação de um léxico próprio para longe das fronteiras da Califórnia. (Não por acaso: a língua é um dos mais poderosos instrumentos de propagação cultural.) De repente, estavam na boca do povo expressões como “disruptivo”, “gig”, “startup”. Mas uma palavra já familiar ao cidadão comum foi adotada como queridinha pelo pessoal do tech — e deturpada pela nova mítica do Vale: “inovação”.
Desses tempos pra cá, tem sido cada vez mais difícil dissociar inovação da cultura do software. Taí. um problema de hermenêutica. A inovação não depende da tecnologia para existir. Tampouco significa botar de pé uma ideia do zero ou tirar leite de pedra. Bill Aulet, diretor do Centro de Empreendedorismo do MIT, diz que inovar é diferente de inventar, porque “inovação é algo que gera valor para o mundo. Ideias por si só não são valiosas. É o ato de comercializá-las que as tornam extraordinariamente valiosas”.
Outro teórico do assunto, Peter Drucker, “o pai da administração moderna”, defendia ser possível gerir a inovação no dia a dia. Segundo ele, a inovação sistemática e intencional requer disciplina: atenção ao mercado, persistência, convergência de saberes.
É o olhar apurado às evoluções que possibilita inovar. Eu poderia tangibilizar com exemplos clássicos como do laboratório da Xerox onde surgiram o desktop, o mouse e toda a base de comunicação para computadores em rede — invenções que só se lançaram inovadoras nas mãos da Apple, que soube aperfeiçoá-las e fazer delas sucesso comercial.
Só que defendo aqui que há muita inovação para além do tech. Miremo-nos, pois, na música. A mentalidade musical ensina muito sobra inovação — seja o olhar minucioso para o espaço entre as notas, que permite emergir performances geniais a partir da improvisação (Miles Davis dizia: “Não toque o que está aí [na partitura]. Toque o que não está aí”); seja a reinvenção de algo para torná-lo (novamente) inovador: pense no fenômeno do Nirvana, nos anos 1990, quando Kurt Cobain e sua trupe atualizaram os acordes que curtiam ouvir, de bandas como Butthole Surfers ou Pere Ubu, ao espírito incerto e revoltado da Seattle da época. David Bowie, no fim da vida, declarou: “Sou um compositor e só escrevi sobre três ou quatro temas na minha carreira toda, coisas como solidão e isolamento”. Apesar disso, foi o camaleão por trás de Aladdin Sane, Thin White Duke, Halloween Jack e Lazarus, com os quais inovou e inspira gerações.
No início da pandemia, Marc Andreessen renovou seu manifesto de 2011 sob o título “É tempo de construir”, que viralizou e gerou polêmica: afinal, enquanto lamentava a falta de condições globais para conter o avanço da Covid-19 e decretava a urgência de se investir em infraestrutura, ele mesmo responde por um dos fundos de venture capital por trás de empreendimentos de ultraluxo e especuladores do mundo digital.
Agora que estamos finalmente nos despedindo desses dois longos anos pandêmicos, arrisco-me a lançar uma nova versão do chamado de Andreessen — de preferência, ao som de Bowie: é tempo de inovar, no dia a dia, nas ações mais cotidianas. Usarmos nosso potencial criativo e, sobretudo, humano. Porque nem tudo foi engolido pelo software.
Confira artigo no Meio e Mensagem
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