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25 de novembro de 2021
Instituto ligado à empresas de tecnologia está por trás da Frente Digital, que faz lobby por projetos de lei que afrouxam as regras para o setor
Em dias corriqueiros, o Salão Nobre da Câmara dos Deputados é decorado com móveis sóbrios dos anos 1950, que combinam com o painel modernista de Athos Bulcão. Naquela quarta-feira, 27 de outubro, porém, ele estava diferente. Uma iluminação azul e roxa, no estilo de eventos de tecnologia, chamava a atenção para o convidado de honra do evento, exibido com pompa em um telão: Fábio Coelho, presidente do Google Brasil. O executivo foi o responsável por abrir a cerimônia de posse da deputada Luisa Canziani na presidência da Frente Digital, a bancada criada em 2019 para discutir tecnologia e inovação no Congresso.
Um dia antes, porém, o clima no Congresso era muito menos ameno para Coelho. O senador Renan Calheiros havia tornado público o relatório da CPI da Covid – que, entre os mais de 80 pedidos de indiciamento, também dedicou dezenas de páginas ao papel das fake news na disseminação da covid-19. No relatório, Calheiros apontou a responsabilidade das redes sociais e plataformas digitais na propagação de mentiras sobre a doença. Era preciso, para ele, “endurecer as regras de publicação de conteúdo e monetização”. Apesar de convocados, os presidentes do Google e do Facebook no Brasil não prestaram depoimentos na CPI. Nunca houve acordo entre os senadores para que fosse definida uma data para ouvir os executivos.
Mas nada disso foi assunto na festa no Salão Nobre. “Aqui não existe esquerda, centrão ou direita. Aqui existe quem defende o futuro”, disse Canziani. A deputada, do PTB paranaense, assumia o lugar de Vinícius Poit, do Novo. No evento, a Frente distribuiu prêmios para os parlamentares que atuaram em “defesa da transformação digital”. O presidente da Câmara, Arthur Lira, do Progressistas de Alagoas, recebeu a maior das honrarias disponíveis: o troféu Alan Turing, batizado em homenagem ao pai da computação. Os outros agraciados foram membros da própria Frente.
Menos de 20 dias depois, Canziani se reuniu novamente com Lira. Desta vez, tinha um objetivo além da bajulação. Acompanhada de executivos do Google, Facebook, TikTok, Instagram e Twitter, ela foi pedir que o presidente da Câmara segurasse a tramitação do PL 2630, o PL das Fake News. A bancada do like mostrou a que veio.
Dias antes, a Frente Digital havia apresentado um extenso documento com dezenas de sugestões que tornavam o projeto, digamos, um pouco mais palatável para as big techs.
Cortar “ferramentas de busca” da incidência do projeto de lei era uma delas – uma óbvia tentativa de tirar o principal produto do Google do ambiente de regulação. Mas havia dezenas de outras sugestões pró-indústria, meticulosamente arranjadas e justificadas com o objetivo de garantir a “inovação”, a “democracia” e a “segurança jurídica” das empresas. Canziani e as empresas pediram a Lira mais tempo para que o relator Orlando Silva, do PC do B paulista, pudesse incorporar as sugestões.
A votação estava marcada para quarta-feira, 17 de novembro, mas acabou adiada. Na terça-feira, 23, Silva apresentou seu novo relatório, que incorporou algumas das sugestões da bancada do like. Ferramentas de busca foram excluídas das regras de moderação de conteúdo. Ele também limitou a aplicação da lei às plataformas com mais de 10 milhões de usuários – não mais 2 milhões, como no texto anterior. A previsão de votação era para a quarta-feira, 24 de novembro, mas ela acabou sendo adiada mais uma vez – agora, deve acontecer na próxima semana.
Em seu discurso de posse, Canziani afirmou que o papel da frente composta por 204 deputados e 12 senadores é dialogar e estar “sempre em contato com a sociedade civil, mas também com o setor produtivo” – que, para ela, não pode ser “tratado como vilão”.
“Tratar as empresas como vilãs, no fim das contas, é a saída preguiçosa. Eles estão levando investimentos. Gerando emprego e inovação. E ainda queremos que eles sobrevivam a um labirinto regulatório? Não pode ser assim”, deixou claro a deputada.
O “diálogo” com a indústria, porém, é mais profundo do que Canziani faz parecer – e não envolve apenas um interesse genuíno por diálogo, mas também o financiamento da bancada. Por trás da frente, está o Instituto Cidadania Digital, associação criada em novembro de 2019 para realizar “a interlocução entre o ecossistema digital e o Congresso através do assessoramento à Frente Parlamentar da Economia & Cidadania Digital”.
É exatamente o mesmo funcionamento da Frente Parlamentar de Agricultura, a influente bancada ruralista. Ela é assessorada por um instituto financiado por grandes empresas do agronegócio, o Instituto Pensar Agro, conhecido como IPA. Não apenas assessorada – mas também custeada. O instituto é o braço institucional do lobby: produz desde estudos pró-agrotóxicos a propagandas disfarçadas de reportagens em grandes jornais, como aquelas favoráveis ao Marco Temporal, que poderia acabar com a demarcação de terras indígenas no país.
Para Vinícius Poit, do Novo, essa relação promíscua entre parlamentares e indústria foi um modelo a ser seguido. “Nos espelhamos nas frentes que deram certo, como a Frente Parlamentar do Agronegócio”, ele declarou em agosto. “É a mais forte do Congresso. Por quê? Porque tem o IPA, Instituto Pensar Agro. Então a gente foi buscar apoio, assim como a [bancada] do Agro faz, a Frente Digital está fazendo também e, com isso, vamos ter mais perenidade”, afirmou.
Assim como a organização que faz lobby para o agronegócio, o Instituto Cidadania Digital oferece pouquíssimas informações em seu site. Há apenas dados genéricos semelhantes aos do site da Frente Digital. Mas, olhando-se os registros do CNPJ, a atuação fica muito clara.
O e-mail vinculado ao CNPJ do instituto é [email protected]. Fundada em 2001, a Câmara e-Net é uma das mais antigas entidades de lobby de empresas de tecnologia do país. Tem mais de 60 empresas associadas – entre elas, Google, Facebook, Mercado Livre, Visa, Twitter, UOL e Dell, só para citar algumas, que pagam mensalidades para bancá-la. Seu atual vice-presidente de estratégia é Marcelo Lacerda, diretor de relações governamentais do Google, eleito para o biênio 2021-2022.
O Instituto Cidadania Digital foi registrado com um único sócio: João Paulo Nemoto Sabino de Freitas, então presidente. da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia, a Abomitec, entidade que representa empresas da área de tecnologia e mobilidade, como Uber, 99 e iFood. Hoje, Sabino é diretor de políticas públicas para a América Latina do iFood e também ocupa o cargo de presidente do conselho administrativo do Instituto Cidadania Digital.
Hoje, o diretor-executivo e sócio do Instituto Cidadania Digital é Felipe Melo França, ex-assessor parlamentar de Vinícius Poit, conselheiro do Students for Liberty, ONG americana dedicada a propagar o liberalismo econômico entre estudantes, e do Livres, movimento liberal político brasileiro. Mas, apesar de anunciar no Linkedin ser diretor do instituto, França representa mesmo é a bancada parlamentar. Três pessoas me confirmaram que é ele quem faz a interlocução entre os deputados e outras áreas, como a sociedade civil – ele se apresenta, inclusive, como “França da Frente Digital”.
A sede do Instituto Cidadania Digital fica em um prédio elegante no coração de Higienópolis, bairro de classe alta em São Paulo. No Linkedin, constam apenas dois funcionários: o próprio França e Rebeca Mota, que se apresenta como consultora legislativa da Frente Digital.
A Frente Digital operou discretamente até este ano, quando foi a responsável pela redação e aprovação em tempo recorde do PL da Inteligência Artificial na Câmara dos Deputados. O projeto se propunha a ser um marco regulatório inovador para o setor, mas acabou sendo uma salvaguarda jurídica para empresas poderem escapar de punições caso cidadãos sejam discriminados ou tenham problemas por causa de suas tecnologias.
Na avaliação dos três especialistas que consultei, ele mais se parece com uma “carta de boas intenções” das empresas do que efetivamente um marco regulatório. Estabelece que sistemas de inteligência devem respeitar a dignidade e a privacidade e minimizar a possibilidade de fins discriminatórios e abusivos, além de buscar neutralidade e segurança.
Mas o artigo 6°, por exemplo, é tudo com que uma empresa do setor poderia sonhar. Enquanto o mundo discute a responsabilização das empresas sobre eventuais danos causados por problemas em inteligência artificial – um reconhecimento facial errôneo, uma demissão ou a negativa de um crédito, por exemplo –, o Brasil foi na contramão. O artigo simplesmente exige que as vítimas provem que os danos foram causados pela inteligência artificial.
A inteligência artificial, um tema complexo e diverso, ainda está em desenvolvimento, motivo pelo qual é difícil prever os impactos nocivos de sua aplicação. Por isso, se houver algum problema decorrente do uso desse tipo de tecnologia, as empresas deveriam ser responsabilizadas – mas o artigo diz que isso só deve acontecer se houver dolo ou culpa comprovado pela vítima. Para um grupo de 24 juristas e pesquisadores que escreveram uma carta aberta contra o artigo, essa exigência coloca em sério risco a possibilidade das vítimas terem seus danos reparados e impõe os custos de desenvolvimento da tecnologia aos cidadãos.
Todos os especialistas que ouvi estranharam a tramitação relâmpago – três meses se passaram entre a votação do regime de urgência e a aprovação do projeto – e a falta de diálogo com setores da sociedade civil que tradicionalmente contribuem em legislações ligadas à internet e à tecnologia. Foi assim que o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados foram aprovados, em debates aprofundados, que consumiram anos, entre mercado, sociedade civil, pesquisadores e parlamentares.
“Foi uma tramitação aceleradíssima, muito fora do comum”, me disse um pesquisador que acompanhou de perto as discussões e pediu anonimato por temer retaliações. “Foi um regime urgente para um tema que, embora esteja sendo debatido, em nenhum país chegou perto de ser transformado em lei com tal detalhamento”, afirmou.
“O PL não é apenas problemático em termos de conteúdo, mas também em forma. Tem vários instrumentos de participação pública. Em outros países, foi constituída uma comissão multissetorial para facilitar o trabalho do relator”, me disse Bruno Bioni, diretor do instituto de pesquisa Data Privacy.
A relatora do projeto foi justamente Luiza Canziani, que agora se tornou presidente da bancada do like. Com a aprovação do projeto, ela publicou um texto no site Jota comemorando “o grande passo” que o Brasil deu rumo à criação de um “ambiente favorável” para o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial. Não houve constrangimento em dividir a assinatura do artigo com a advogada Ana Paula Bialer, lobista da Brasscom, entidade que representa a indústria de telecomunicações e foi indicada pelo órgão para ocupar uma cadeira no Conselho Nacional de Proteção de Dados.
O projeto, agora, será analisado pelo Senado.
Apesar de ter apresentado e votado o PL da Inteligência Artificial em tempo recorde, a Frente Digital teve uma posição diametralmente oposta em relação à lei de fake news. “Praticamente no mundo todo, o tema tem sido debatido e ainda não se chegou a soluções legislativas factíveis, tendo-se priorizado o debate amplo e pautado em evidências”, diz o relatório da bancada que critica o projeto relatado por Orlando Silva. O que ela propõe são caminhos liberais de auto e corregulação – ou seja, deixar que as empresas criem suas próprias regras.
“Existe um lobby de big techs, sobretudo de empresas grandes, que estrutura uma determinada equipe que faz a posição da Frente Digital. Eu descobri isso no processo”, me disse Orlando Silva. Para ele, a bancada se transformou no “advocacy das big techs”. “Se você observar a posição das big techs isoladamente e da Frente, é a mesma coisa”.
Especialistas que acompanharam as reuniões do grupo de trabalho criado para discutir o projeto de lei afirmam que a Frente Digital pouco participou dos debates nos últimos 15 meses. “O deputado Poit, que liderava a frente, não participou praticamente de nenhuma audiência pública do ciclo de mais de 15 debates realizados este ano”, me disse Bia Barbosa, jornalista, mestra em políticas públicas e integrante da Coalizão Direitos na Rede, que acompanha as discussões.
A postura, no entanto, mudou nesta reta final. “Quando as plataformas viram, tardiamente, que o PL realmente iria a voto, passaram a agir para pedir mais tempo para a discussão e tentar reduzir as obrigações previstas no texto. E a Frente Digital foi quem mais vocalizou diretamente as demandas das empresas”, falou Barbosa. “Não posso dizer que as plataformas apoiam integralmente as propostas da frente. Mas me parece que é o contrário. Acho que é a frente que apoia o pleito das plataformas”.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o Google afirmou que mantém “relações institucionais e diálogo aberto com diversas entidades, organizações e representantes do poder público de todos os espectros como parte do nosso trabalho de informar a sociedade sobre nossos produtos e nossa atuação no país”.
Enviei questões à Frente Digital e ao Instituto Cidadania Digital, que compartilham a mesma assessoria de imprensa. Nenhum dos dois respondeu até a publicação deste texto. Também pedi informações para Luiza Canziani e para a Câmara e-Net. Ambos não retornaram os meus e-mails.
Confira a matéria no The Intercept.
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